sábado, 23 de junho de 2007

O Ayahuasca e o Neoxamanismo

Vale ressaltar que nem sempre é fácil separar o xamanismo do neoxamanismo. Durante um congresso realizado no Peru, em 1998, foram levantadas algumas características que, em geral, só estariam presentes num "verdadeiro" xamã: ele não faz auto-propaganda; o seu reconhecimento emana da comunidade; existe uma certa "inevitablidade" do seu destino -trata-se de uma missão, um chamado, que de certa forma é um fardo; o xamã tradicional pode curar, mas pode também causar danos. Mas é evidente que na prática as fronteiras não são tão claras...

Observa-se, atualmente, um processo de expansão de diversas religiões brasileiras no exterior -umbanda, Assembléia de Deus e o próprio Santo Daime, por exemplo. Você tem notícia sobre como elas são ressignificadas lá fora? Como fica a questão legal, no caso do Daime?

Labate: Há ainda poucas pesquisas sobre a expansão do Santo Daime e da União do Vegetal (UDV) para o exterior. Visitei o Santo Daime na Itália e na França e pude observar que vem ocorrendo uma espécie de inversão simbólica: lá, o caboclo da Amazônia é revestido de enorme poder e sabedoria -e começa a surgir um novo tipo de especialista religioso (que tende a formar uma rede de prestação de serviços particular). Os amazonenses parecem captar rapidamente estes significados e se apropriar deles... Na verdade, o mesmo já vinha ocorrendo nos centros urbanos do Brasil: o Acre e a Amazônia ganharam status de centros de peregrinação.

Outra característica dos rituais no exterior é que são acompanhados por uma maior rigidez, por aquilo que alguns autores denominam de “hiperreal”: uma constelação que procura ser mais real do que o próprio real. Justamente por se tratar de “imitações”, parece haveria a necessidade de se enfatizarem as regras, o modelo, para refutar a acusação de "cópias falsas". Eis, aliás, outra característica presente também na maioria dos templos urbanos brasileiros.

Outro aspecto interessante da expansão internacional da ayahuasca é que o português está adquirindo um caráter sacro, na medida em que, tanto no Santo Daime, quanto na UDV, os cantos são mantidos em seu formato original e os estrangeiros têm se dedicado a aprender nossa língua. Por fim, podemos notar que esta diáspora religiosa do Terceiro para o Primeiro Mundo tem permitido o estabelecimento de novas e inusitadas parcerias, como no caso de uma comunidade, na Califórnia, que participa simultaneamente dos ritos da Native American Church (consumidora do peiote) e do Santo Daime.

Por que, embora haja uma tradição de consumo da ayahuasca por xamãs e curandeiros do Peru, Colômbia, Venezuela e Equador, apenas no Brasil surgiram religiões não-indígenas baseadas no consumo da bebida?

Labate: É uma boa pergunta. Eu não sei ao certo... Os daimistas e udevistas diriam que isto ocorreu devido à “revelação” obtida por seus líderes-fundadores... É curioso que condições socioeconômicas semelhantes possam ser encontradas em outros países latino-americanos, sem que lá tenha havido o florescimento de instituições parecidas. Penso que esta é mais uma evidência da força da matriz religiosa brasileira, marcada por uma enorme capacidade de absorção simbólica da diversidade, ressignificando e recriando permanentemente religiões, ritos, mitos etc.

É bem verdade que existem modalidades análogas às religiões ayahuasqueiras brasileiras na América do Norte e na África, como é o caso da Native American Church, que faz uso do peiote, nos EUA e no México, e do Buiti, culto fundado no consumo da iboga, praticado nos Camarões e no Gabão. Nestes dois casos, trata-se igualmente de religiões capazes de reelaborar as antigas tradições dos sistemas locais a partir de uma leitura influenciada pelo cristianismo. No entanto, nos outros países as manifestações são mais marcadamente étnicas, ou seja, costumam ser apanágio de um grupo específico, diferente do que ocorre com o Santo Daime e a União do Vegetal, no Brasil.

Qual é o tema da pesquisa de doutorado que você está desenvolvendo atualmente na Unicamp?

Labate: Pretendo analisar as transformações que o xamanismo ayahuasqueiro está sofrendo em função da demanda externa dos brancos, como turistas, ONGs e órgãos de pesquisa. Quero abordar a fusão dos universos indígena e branco através do aparecimento de vários novos personagens sociais híbridos, como neoxamãs -brancos que “viram xamãs”- e “neo-índios” -índios que se globalizam e se conectam as circuitos internacionais de turismo, conferências etc.

O campo ayahuasqueiro é um laboratório para a observação de uma tendência contemporânea mais ampla, marcada pela fusão crescente entre pesquisador e nativo, pesquisa e militância, saber cientifico e popular -o que nos permite também repensar algumas instâncias antropológicas clássicas, como o papel do antropólogo e a separação entre sujeito e objeto.

E como é nova coletânea, “O Uso Ritual das Plantas de Poder”, que você organizou com Sandra Goulart?

Labate: O livro aborda os usos rituais, tradicionais e modernos, dos psicoativos. É uma espécie de continuação da coletânea “O Uso Ritual da Ayahuasca”, ampliando agora a análise para incluir outras substâncias como o tabaco, a Cannabis, a iboga, a jurema, o pariká, a coca, espécies de Brugmansia e Brunfelsia, entre outras.

A obra procura evidenciar os múltiplos usos que estas plantas têm tido ao longo da história: os diversos usos místicos, terapêuticos, estéticos, o seu papel na promoção da coesão social e identidade étnica, na transmissão de valores culturais, no estabelecimento de contato com agentes sobrenaturais, nas transformações do “self” e assim por diante.

Ao mesmo tempo, pretendemos indicar uma ponte entre a análise sobre rituais e religião, pilares centrais da antropologia, com a questão do consumo das “drogas” nas sociedades contemporâneas, chamando a atenção para a necessidade abordagens mais interdisciplinares e menos patologizantes neste campo de estudos. A coletânea deve ser lançada no ano que vem, completando a trilogia.

Gostaria de saber um pouco de sua experiência pessoal com o chá, já que ela é inseparável de seu trabalho. Como foi seu primeiro contato com a ayahuasca? Qual o papel da bebida e dos rituais na sua vida?

Labate: Eu tomei a ayahuasca pela primeira vez em Pocinhos do Rio Verde, no sul de Minas Gerais, num núcleo da União do Vegetal. Logo depois participei de um ritual do Santo Daime, e resolvi partir imediatamente para a Amazônia, para conhecer a fonte original dessas religiões. Fiquei 40 dias pesquisando as várias vertentes.

Quando voltei, senti que algo fundamental havia mudado em minha vida e fui tomada por um certo ímpeto messiânico: “o mundo precisa saber desta planta!” (claro que depois descobri que eu não era a primeira pessoa a sentir isto...). Organizei então o Primeiro Congresso sobre o Uso da Ayahuasca (Iº Cura), na Unicamp. Desde aquela época fui várias vezes ao Peru e à Colômbia, organizei outros eventos, participei de conferências e produzi livros, enfim, o tema abarcou toda a minha vida.

A ayahuasca é algo muito íntimo. Acho que há um certo tipo de vulgarização da experiência visionária; ou talvez eu não aprecie os relatos pessoais simplesmente porque minha veia poética não é muito desenvolvida... Posso dizer, entretanto, que a ayahuasca para mim é como um aliado, que está aí para me ajudar. Ela tem me ensinado, confortado e limpado. Pois a bebida é antes de mais nada um “purgante”.

As pessoas pensam em termos de “estados alterados de consciência”, mas talvez fosse mais correto falar em “estados corporais alterados”. O seu consumo, em combinação com outras plantas, dietas e restrições implica numa verdadeira reprogramação química do organismo. Ela não é uma pílula mágica, um fim em si mesmo, mas sim um veículo cuja eficácia só pode ser medida no dia-a-dia, através das alterações que provoca no estilo de alimentação, sono, sociabilidade etc. Eu sinto que é como se fosse a chave de um parafuso: cada vez que tomo, dá mais uma volta, mais uma ajustada para eu “entrar no eixo”, tornar-me mais forte, saudável.

Ao mesmo tempo, a bebida está ligada à morte, ao além-mundo, à essência da vida. Dizem que ela ensina muito sobre a natureza, a flora e a fauna, mas comigo isto sinceramente não acontece, talvez por eu ser uma pessoa bem urbana. É claro que para um indígena, cuja narrativa da origem da própria humanidade está ligada ao aparecimento da ayahuasca na Terra, a planta possui outro status e significado. De qualquer forma, sou muito grata de ter tido a oportunidade de conhecer este mundo das plantas e remédios da floresta.

Ilana Goldstein
É mestre em antropologia social na USP e em mediação cultural na Sorbonne, autora de "O Brasil - Best Seller de Jorge Amado" (ed. SENAC, no prelo).

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